Relembre os seus dias de 2020 lendo "Entre o Medo e a Luz. 2020: um Diário", da autoria de José Miguel Braga.
O Diário veio contrariar o enfado, a doença, a moleza do instante, a
opressão reinante. Os Diários são animados pelos ventos da viagem.
Longas rotas ignotas, “uma pequena luz” na noite do navio, uma candeia
no caminho do viajante, a tábua onde escrever cartas de amor e depois a
resistência, a percepção do corpo aprisionado, a passagem para o outro
lado. Nesse dia em que começamos a escrever todos os dias, somos levados
indo e às vezes encantados com a aparição das coisas. Uma
corpo-escrito, o exercício da respiração, a observação. Vivo chegado aos
ventos do mar. O Zéfro soprando levemente, mas também o Bóreas enrugado
nas serranias e promontórios, com o seu modo desgrenhado de tocar as
coisas. Olho no alto os céus navegando nuvens. Depois a terra e as suas
variações, coisas da água e da arquitectura.
Vivo numa terra
misteriosa e nós por cá. Lá vou eu à cidade. Tempo para os jornais
falados. Não se pode perder nada. O espectáculo é bom. O humano
entendimento que acontece nas cidades. As casas, as histórias e um tempo
para a meditação. As coisas que se dizem. Não podemos perder nada, não
podemos perder nada. O Diário é um vício, às vezes um instante ou uma
fulguração e noutro dia o assunto vem mais longo e denso ou difícil de
explicar. Deixamo-nos ir. Aos poucos vão-se juntando fragmentos, coisa
vista, impressões, uma fala. Reparo que durante o Diário aparecem os
pássaros. Fico contente a escrever, numa espécie de visitação a lugares
que julgava perdidos e logo se abre uma porta e se levantam imagens,
pequenas coisas que podem acontecer durante o silêncio. A música, a
página em branco, a tentação.